‘Eu fui tratada como um bicho’, diz grávida que deu à luz no chão de maternidade

Após dar à luz ao menino Azafe, no chão de uma maternidade pública, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, Queli Santos Adorno, de 35 anos, está em casa, onde tenta se recuperar do trauma. Ela, que amamentou os outros três filhos — Kaic, de 19 anos, Davi, de 8, e Heitor de 6 —, até agora não conseguiu dar de mamar ao recém-nascido, precisa tomar remédios para controlar a pressão e ainda revive o pesadelo do dia do parto.

— Eu fui tratada como um bicho. É um sentimento de impotência. Quando olho para o meu filho, fico pensando que deveria ter gritado mais pelos meus direitos e os dele, e me sinto culpada por não ter feito isso — confessa Queli, chorando, sentada no sofá da casa simples onde mora, no bairro São Bento, em Caxias. — Tem horas que eu fico em estado de choque, paralisada. Escuto as pessoas falando comigo, mas não consigo responder.

Queli deu entrada no hospital na noite de 22 de março, uma sexta-feira, para ter o caçula. No primeiro atendimento, ela foi alertada de que poderia entrar em trabalho de parto a qualquer momento e, por isso, deveria aguardar no local.

As contrações aumentaram e, depois de seis horas, ela passou por uma terceira análise clínica, desta vez com outra médica. Um documento escrito à mão e com o carimbo de Sheila Peixoto Atthie Maia mostra que a mesma mandou Queli retornar para casa. E registrou, ainda, a recusa da grávida em deixar a maternidade.

Diante da não-internação, o bebê nasceu no chão da recepção da maternidade, às 6h. A mãe e a criança foram amparados pela primeira médica, que voltava do descanso. Mas ela estava sem as luvas e o equipamento necessário. Segundo a Prefeitura de Duque de Caxias, a médica que teria se negado a interná-la foi demitida e será aberta uma sindicância para apurar melhor os fatos.

— A médica deveria ter escutado a voz de uma mãe. Ela foi incapaz de sair da sala para ver como eu estava, e o hospital estava vazio naquele dia. Eu era a única mãe na recepção. Mas talvez fosse necessário que eu vivesse isso, para evitar que outras mulheres também vivessem. Por isso, mesmo debilitada, quero lutar para que nenhuma mulher tenha que viver o que vivi — disse Queli.

Em nota, a obstetra diz que Queli não apresentava a dilatação mínima para internação de gestantes, conforme as diretrizes da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e do Ministério da Saúde. Ela assegura que praticou os protocolos adequados, mas que entende que isso não diminui a angústia que a paciente enfrentou.

A advogada contratada pela família de Queli afirmou que eles estão processando a prefeitura, pela responsabilidade de prestar atendimento, e a médica, por negligência.

Após enchente, só restaram o botijão e o fogão
A dor de Queli ao ver o próprio filho nascer em condições precárias de higiene, saúde e até mesmo conforto se soma ao desespero de ter perdido o pouco que tinha há três meses, após uma enchente deixar sua casa debaixo d’água, só restando um botijão de gás e um fogão. Ela diz que ainda não recebeu a ajuda prometida pelo governo do estado, com o cartão Recomeçar:

— Tudo que tem na minha casa foi doado pelas pessoas. Hoje, não temos nem televisão. Recebo Bolsa Família, mas só paga o meu aluguel. A alimentação, eu pego na igreja.

A Prefeitura de Duque de Caxias informou, por meio de nota, que a primeira leva do cartão Recomeçar foi entregue nesta terça-feira. Mas se comprometeu a procurar Queli, na tentativa de resolver a situação.

Nota da médica, na íntegra
”À paciente foi dada a orientação de reavaliação a cada duas horas. Durante a consulta, ela comentou que não desejava ir para casa. Para garantir um registro preciso e completo, eu registrei essa informação na ficha médica dela.

Tanto é que, conforme pode ser verificado, na ficha médica consta ‘nova reavaliação às 6h30’. Portanto, não há como eu tê-la orientado a ir para casa e, ao mesmo tempo, a fazer a reavaliação duas horas após.

De acordo com as diretrizes da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e do Ministério da Saúde do Brasil, mulheres grávidas são internadas quando atingem cerca de 4 a 6 centímetros de dilatação. Quando eu avaliei a paciente ela apresentava 2 centímetros de dilatação. Por isso, a médica que a atendeu antes de mim e eu não indicamos a internação.

Tenho um histórico sólido de prática médica ética e de cuidados junto às minhas pacientes. Sou médica há 32 anos, dos quais 29 foram dedicados à obstetrícia, com mais de 2000 partos realizados. Ao longo de todo esse período, nunca respondi a nenhum processo, o que pode ser confirmado junto ao Cremerj”.